Em termos técnicos, ela atende pelo nome de GFAJ-1 e pertence à família bacteriana das Halomonadáceas, mas provavelmente você ouviu falar dela como a “bactéria-ET”, ou a “bactéria da NASA”.
Na semana passada, a NASA, numa tentativa (bem-sucedida, aliás) de chamar o máximo de atenção do público, convocou uma entrevista coletiva para anunciar uma nova descoberta que revolucionaria nossa forma de pensar a vida, com implicações importantes para o entendimento das possibilidades de vida fora do planeta Terra, e que seria publicado em um artigo científico na revista Science.
Bem, com uma chamada dessas, até dá pra entender o desânimo de várias pessoas quando a NASA finalmente anunciou que a nova descoberta era “apenas” uma bactéria terráquea. Mas peraí né. Afinal de contas, era uma terráquea com uma capacidade muitíssimo peculiar: substituir o fósforo (normalmente capturado bioquimicamente na forma de fosfato) por arsênio (arseniato, no caso). E o mais chocante de tudo, essa bactéria conseguiria crescer na ausência de fosfato utilizando arseniato para compor suas macromoléculas: DNA/RNA, proteínas e lipídios. Um DNA sem fosfato de fato é uma bela novidade!
Como a bactéria foi isolada a partir de sedimentos do Lago Mona, na Califórnia, que é um lugar onde a concentração de sais (incluindo o usualmente tóxico arseniato) é violentamente alta, até faz algum sentido evolutivo, em primeiro lugar, que essa bactéria deva ter meios (adaptações) de lidar com esse monte de arseniato que existe no ambiente e, em segundo lugar, que (esse passo agora é meio grande...) essas adaptações poderiam incluir uma flexibilização nas rotas de síntese de macromoléculas para usar o arsênio como substituto do fósforo...
Mas bem, o ponto principal desse post é pensar como as pessoas reagiram ao artigo. De uma forma geral, eu diria que como regra, especialmente nos comentaristas procurados pela mídia nacional, não se questionou em nenhum momento a acurácia dos testes e da interpretação dos resultados do grupo da NASA. O que me parece especialmente estranho é que essa "aprovação" às conclusões dos autores foi emitida mesmo ANTES do artigo estar disponível. Por que essa fé? Grife NASA ou grife Science?
Talvez ainda tomados da necessidade de sobrevalorizar a descoberta, numa linha meio “gente, não é um ET, mas é muito legal”, alguns especialistas também escorregaram em “sobreinterpretações”. Teve gente (da área) que falou que essa descoberta “derrubava a noção de ancestralidade comum entre os seres vivos”. HEIN?? Será que não é claro que o uso de arseniato no metabolismo, se confirmado, representa uma nova adaptação que surgiu em uma linhagem específica que está perfeitamente conectada às outras através de relações de ancestralidade??? Pior, no artigo original existe até uma filogenia da GFAJ-1. Ora, se uma filogenia é uma representação de ancestralidade, como que essa bactéria foge ao padrão de ancestralidade comum? Uma outra comentarista ouvida pela imprensa nacional também parece não ter lido o artigo original, já que ao comentar a descoberta (no dia seguinte à sua publicação) disse que“seria ótimo fazer uma filogenia dessa bactéria usando o gene 16S” (Aqui uma nota: esse é o gene típico pra caracterizar a ancestralidade de uma bactéria, e foi EXATAMENTE isso que foi feito no artigo original).
E outra coisa importante, por que os veículos de divulgação não discutem a incerteza que pode existir sobre os resultados e suas conclusões (discussão essa que parece essencialmente limitada a blogs sobre ciência). O máximo que eu vi na imprensa brasileira foi uma matéria no iG sobre o ceticismo de um prêmio Nobel (olha a grife aí gente) sobre o assunto. Porque assim né (só eu acho isso?), é impossível tentar “alfabetizar” cientificamente uma sociedade sem deixar claras as limitações da própria ciência. Considerar que cada nova descoberta está “escrita em pedra” ignora um dos principais aspectos do fazer científico, que é seu eterno ceticismo, sua eterna ânsia em refutar coisas. Quem quiser ler uma longa argumentação de motivos pelos quais os dados apresentados no artigo podem não ser tão robustos assim tem nesse post (em inglês e bem técnico) uma ótima leitura.
Aliás, pra quem gosta também de pensar em como a luta por recursos pode apressar (pra dizer o mínimo) a publicação de resultados ainda não totalmente convincentes tem na historinha da GFAJ-1 um caso interessante. Algumas pessoas acham que todo o aparato midiático foi usado pela NASA, pelo menos em parte, para justificar a continuidade de seu (caro) programa de pesquisa em exobiologia. Mais. Paul Davies, co-autor do artigo disse que o nome da bactéria significa “Give Felisa a Job”, ou “Dê um emprego à Felisa”, já que a Felisa Wolfe-Simon, primeira autora do artigo, ainda não tem uma posição permanente na equipe de pesquisadores da NASA...
E eu, estou dizendo que tudo não passa de uma conspiração? Não. Só estou dizendo que a história da bactéria que come arsênio ainda está muito longe de ser esclarecida, e alguns aspectos “além da ciência” não ajudam. Mas também, o artigo pode ser um marco. SE confirmada, a GFAJ-1 realmente nos ensinará que a vida é muito mais flexível do que imaginávamos e, sim, aumenta o espectro de situações possíveis onde podemos buscar “vidas” em outros lugares da galáxia, mas a gente não pode, ao fazer divulgação científica, ignorar esse “SE”. Esse “SE” é absolutamente fundamental. Esse “SE” é ciência!
5 comentários:
Se com a GFAJ-1 a Felisa Wolfe-Simon não conseguir a posição permanente na NASA eles vão "invertar" a GFAJ-2-a missão?
Sem a dúvida, sem as pergutnas, não se vai a lugar nenhum. Parabéns pelo post.
Ta aí...ja sei o que vou fazer qdo minha bolsa acabar...vou inventar a GTAJ...Give TAIANA a job..hehehe...
Adorei o post Nelson!
Abração
Parabéns Nelson!
O Post está muito bem estruturado e chama atenção para questões chave na discussão desse tipo de pulicação.
Um abraço,
A discussão da bacteria continua... mas, de tudo, o que achei mais grave é o atropelo da ciência (para nao dizer abandono) em nome de publicação e status. Muito bom esse texto! A era romântica da ciência ja passou. Estamos/somos preparados para lidar com pilantragem e interesses economicos nas nossas bancadas?
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