terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A Bactéria da Nasa: algumas reflexões sobre divulgação científica



Em termos técnicos, ela atende pelo nome de GFAJ-1 e pertence à família bacteriana das Halomonadáceas, mas provavelmente você ouviu falar dela como a “bactéria-ET”, ou a “bactéria da NASA”.

Na semana passada, a NASA, numa tentativa (bem-sucedida, aliás) de chamar o máximo de atenção do público, convocou uma entrevista coletiva para anunciar uma nova descoberta que revolucionaria nossa forma de pensar a vida, com implicações importantes para o entendimento das possibilidades de vida fora do planeta Terra, e que seria publicado em um artigo científico na revista Science.

Bem, com uma chamada dessas, até dá pra entender o desânimo de várias pessoas quando a NASA finalmente anunciou que a nova descoberta era “apenas” uma bactéria terráquea. Mas peraí né. Afinal de contas, era uma terráquea com uma capacidade muitíssimo peculiar: substituir o fósforo (normalmente capturado bioquimicamente na forma de fosfato) por arsênio (arseniato, no caso). E o mais chocante de tudo, essa bactéria conseguiria crescer na ausência de fosfato utilizando arseniato para compor suas macromoléculas: DNA/RNA, proteínas e lipídios. Um DNA sem fosfato de fato é uma bela novidade!

Como a bactéria foi isolada a partir de sedimentos do Lago Mona, na Califórnia, que é um lugar onde a concentração de sais (incluindo o usualmente tóxico arseniato) é violentamente alta, até faz algum sentido evolutivo, em primeiro lugar, que essa bactéria deva ter meios (adaptações) de lidar com esse monte de arseniato que existe no ambiente e, em segundo lugar, que (esse passo agora é meio grande...) essas adaptações poderiam incluir uma flexibilização nas rotas de síntese de macromoléculas para usar o arsênio como substituto do fósforo...

Mas bem, o ponto principal desse post é pensar como as pessoas reagiram ao artigo. De uma forma geral, eu diria que como regra, especialmente nos comentaristas procurados pela mídia nacional, não se questionou em nenhum momento a acurácia dos testes e da interpretação dos resultados do grupo da NASA. O que me parece especialmente estranho é que essa "aprovação" às conclusões dos autores foi emitida mesmo ANTES do artigo estar disponível. Por que essa fé? Grife NASA ou grife Science?

Talvez ainda tomados da necessidade de sobrevalorizar a descoberta, numa linha meio “gente, não é um ET, mas é muito legal”, alguns especialistas também escorregaram em “sobreinterpretações”. Teve gente (da área) que falou que essa descoberta “derrubava a noção de ancestralidade comum entre os seres vivos”. HEIN?? Será que não é claro que o uso de arseniato no metabolismo, se confirmado, representa uma nova adaptação que surgiu em uma linhagem específica que está perfeitamente conectada às outras através de relações de ancestralidade??? Pior, no artigo original existe até uma filogenia da GFAJ-1. Ora, se uma filogenia é uma representação de ancestralidade, como que essa bactéria foge ao padrão de ancestralidade comum? Uma outra comentarista ouvida pela imprensa nacional também parece não ter lido o artigo original, já que ao comentar a descoberta (no dia seguinte à sua publicação) disse que“seria ótimo fazer uma filogenia dessa bactéria usando o gene 16S” (Aqui uma nota: esse é o gene típico pra caracterizar a ancestralidade de uma bactéria, e foi EXATAMENTE isso que foi feito no artigo original).

E outra coisa importante, por que os veículos de divulgação não discutem a incerteza que pode existir sobre os resultados e suas conclusões (discussão essa que parece essencialmente limitada a blogs sobre ciência). O máximo que eu vi na imprensa brasileira foi uma matéria no iG sobre o ceticismo de um prêmio Nobel (olha a grife aí gente) sobre o assunto. Porque assim né (só eu acho isso?), é impossível tentar “alfabetizar” cientificamente uma sociedade sem deixar claras as limitações da própria ciência. Considerar que cada nova descoberta está “escrita em pedra” ignora um dos principais aspectos do fazer científico, que é seu eterno ceticismo, sua eterna ânsia em refutar coisas. Quem quiser ler uma longa argumentação de motivos pelos quais os dados apresentados no artigo podem não ser tão robustos assim tem nesse post (em inglês e bem técnico) uma ótima leitura.

Aliás, pra quem gosta também de pensar em como a luta por recursos pode apressar (pra dizer o mínimo) a publicação de resultados ainda não totalmente convincentes tem na historinha da GFAJ-1 um caso interessante. Algumas pessoas acham que todo o aparato midiático foi usado pela NASA, pelo menos em parte, para justificar a continuidade de seu (caro) programa de pesquisa em exobiologia. Mais. Paul Davies, co-autor do artigo disse que o nome da bactéria significa “Give Felisa a Job”, ou “Dê um emprego à Felisa”, já que a Felisa Wolfe-Simon, primeira autora do artigo, ainda não tem uma posição permanente na equipe de pesquisadores da NASA...

E eu, estou dizendo que tudo não passa de uma conspiração? Não. Só estou dizendo que a história da bactéria que come arsênio ainda está muito longe de ser esclarecida, e alguns aspectos “além da ciência” não ajudam. Mas também, o artigo pode ser um marco. SE confirmada, a GFAJ-1 realmente nos ensinará que a vida é muito mais flexível do que imaginávamos e, sim, aumenta o espectro de situações possíveis onde podemos buscar “vidas” em outros lugares da galáxia, mas a gente não pode, ao fazer divulgação científica, ignorar esse “SE”. Esse “SE” é absolutamente fundamental. Esse “SE” é ciência!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Contradição em Termos - por Reinaldo Lopes

O texto abaixo é o primeiro "copiado" do site do Evolução em Foco. Foi escrito pelo jornalista Reinaldo Lopes, na Folha, especialziado em divulgação científica e que mantém o blog Laboratório. Mostra de uma forma bem interessante e pouco explorada como o próprio relato bíblico torna impossível um "criacionismo literal".


Contradição em Termos

Por Reinaldo Lopes

Permita-me fazer uma proposta modesta, gentil leitor. Toda vez que alguém se disser contra a teoria da evolução porque é criacionista e, portanto, “acredita na criação descrita na Bíblia”, pergunte educadamente ao seu interlocutor: qual criação? Nosso criacionista hipotético pode nem ter reparado, mas há DUAS criações diferentes da Terra e dos seres humanos, uma depois da outra, no livro do Gênesis. Aliás, elas se contradizem.

Ok, talvez a minha proposta modesta não seja tão modesta assim. Indo mais adiante com ela, arrisco-me a dizer, com base no dado acima, que o criacionismo literalista, aquele que supostamente segue “ao pé da letra” o texto bíblico, não só é inviável do ponto de vista lógico como talvez vá diretamente CONTRA as intenções dos gênios israelitas anônimos que escreveram e compilaram os primeiros capítulos do Gênesis. O alto grau de simbolismo e esquematização adotado por esses autores deixa mais ou menos claro que eles não teriam problema nenhum com uma leitura não-literalista de seus textos cosmogônicos – e possivelmente até tivessem essa intenção desde o início. É o que pretendo demonstrar nos parágrafos a seguir.

Nomes divinos
Qualquer pessoa que tenha em mãos uma boa tradução da Bíblia e esteja um pouquinho atenta vai perceber que, durante as narrativas da Criação, parece haver uma mudança de pronome de tratamento. Do começo do Gênesis até o versículo 4 do capítulo 2 (a primeira narrativa), Deus é simplesmente “Deus”; daí em diante, até o começo do capítulo 3 (fim da segunda narrativa), ele se torna o “Senhor Deus”. Essa mudança não tem nada de casual: representa, em hebraico, a transição do termo Elohim (literalmente “deuses”, mas na verdade uma espécie de plural majestático que designa o Deus único) para o termo Yahweh Elohim (ou “Javé Deus”, como vemos em algumas traduções atuais). Yahweh, ou Javé, parece ter sido o “nome próprio” (por falta de palavra melhor) da divindade de Israel antes que os judeus, por respeito, deixassem de pronunciar a palavra.

O mero fato de as duas designações serem usadas de maneira consistentemente separada nos capítulos que abrem a Bíblia é sugestivo, mas não prova muita coisa. Bem mais reveladora é a estrutura dos relatos. Os defensores do literalismo bíblico às vezes argumentam que o segundo relato é apenas a explicação e a ampliação do primeiro, partindo do geral para o particular. Boa tentativa, mas a leitura do texto sem preconceitos pega essa interpretação de calças curtas.

A primeira narrativa, por exemplo, diz que Deus criou as plantas no terceiro dia de seu trabalho, as aves no quinto dia e os animais terrestres no sexto dia, pouco antes dos humanos. (Aliás, a divisão do trabalho divino em dias só aparece no primeiro relato.) Já o Senhor Deus (lembre-se, são nomes divinos diferentes), de acordo com o texto, criou o homem “quando ainda não havia nenhum arbusto do campo sobre a terra e ainda não tinha brotado a vegetação, porque o Senhor Deus ainda não tinha enviado chuva sobre a terra, e não havia ninguém para cultivar o solo”. O Senhor Deus primeiro forma o homem com o barro da terra e só então planta um jardim no Éden, onde coloca o humano primordial. Mas as plantas não surgiram antes das pessoas? Não de acordo com a segunda versão da Criação.

A narrativa número 2 prossegue: “Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens”. Novamente, não há como harmonizar as duas histórias, já que os animais existiam antes dos seres humanos, segundo o que diz o relato número 1.

O caráter independente das duas narrativas da Criação fica ainda mais claro no clímax de ambas as histórias, a criação do homem e da mulher. Você obviamente se lembra do uso da costela do primeiro membro do sexo masculino como matéria-prima para a produção do primeiro membro do sexo feminino. (Não estou usando “Adão” e “Eva” porque, nesses relatos primevos, eles não têm nome próprio.) Pois a narrativa número 1 da Criação aparentemente nunca ouviu falar em costela. Deus usa apenas a palavra (com verbos, aliás, na segunda pessoa do plural; ele parece estar deliberando com seus conselheiros angélicos) como matéria-prima: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (o humano de barro da outra versão aparentemente não é a imagem e semelhança de Deus…). E o texto continua: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou”. Sim, ambos os sexos surgem simultaneamente nessa versão.

Sacerdotal
Após ler sobre essa fieira de incongruências, talvez você esteja achando que eu compartilho do escárnio e da pena que tanta gente gosta de destilar sobre as narrativas da Criação. Pois não o faço. Ambas as histórias estão cheias de poesia e beleza, representando insights importantes sobre a relação do homem com a natureza e com Deus. Mas essas lições poderosas só ficam realmente claras quando deixamos de lado a mania de ler tais textos como manuais de ciência planetária, biologia e história e nos damos conta de que eles são formas narrativas de expressar uma visão de mundo.

Para ficar restrito apenas à história número 1 (minha favorita, devo confessar), não é por acaso que a maioria dos estudiosos do texto bíblico a atribui a um membro da casta sacerdotal israelita. A estrutura altamente ritmada e simétrica do texto faz do Cosmos inteiro um gigantesco templo e retrata Deus como o sacerdote.

Como os celebrantes no Templo de Salomão, Deus abençoa a Criação e consagra o sétimo dia, o sábado, como o dia santo para celebrar a conclusão de sua obra. (Curiosamente, o mandamento de guardar o sábado, na maioria dos textos bíblicos, como em Deuteronômio 5, 12-15, não usa a Criação como justificativa, o que parece indicar que a ideia foi introduzida de forma tardia na cultura israelita.)

O número sete, símbolo da completude no antigo Oriente Próximo, não aparece só quando falamos do número de dias da Criação. A frase “e Deus viu que era bom” (referindo-se a algum elemento criado) surge sete vezes no texto; a palavra “Deus” aparece exatas 35 vezes (pois é, sete vezes cinco); e a descrição do sétimo dia tem, em hebraico, exatas 35 palavras. E os três pares de dias em que Deus trabalha ativamente são unidos por simetrias que vão do geral para o particular, em geral com três dias de separação entre si. A luz, por exemplo, é criada no primeiro dia; já o Sol e a Lua surgem no quarto dia. O céu é criado no segundo dia, enquanto as aves surgem no quinto dia, e assim por diante.

Deixe-me frisar novamente: isso não é história, é poesia, e o autor bíblico sabia que era poesia. É uma forma de expressar a crença de que o desejo de Deus para a humanidade e para toda a natureza é um mundo harmônico – tanto que humanos e animais são imaginados como vegetarianos, para desespero dos que gostam de atribuir os atuais desastres ambientais à influência ideológica do Gênesis.

Chegamos a um caso curioso de “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não é possível honrar a complexidade – e a letra – do texto bíblico sem reconhecer seu caráter polifônico e simbólico. Paradoxalmente, quem se diz criacionista se recusa a fazer isso. Além de se recusar a apreciar o quadro em expansão que a ciência está pintando sobre as origens da vida e do Universo, pode muito bem ser que os criacionistas estejam negligenciando o melhor do seu próprio texto sagrado.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Diversificando um pouco - Dia Darwin na UFMG!

Depois de uma vergonhosa pausa de mais de um mês, culpa em boa parte da minha própria desorganização (um exemplo em microescala de "dissseminação da desordem"?), vou tentar dar um novo fôlego ao blog. Pra isso, resolvi fazer aqui uma homenagem a um evento interessantíssimo que ocorre pela segunda vez aqui na UFMG.



O evento, chamado "Dia Darwin", está no seu segundo ano e consiste em uma série de palestras que tem como público-alvo os alunos de graduação. Mas bem, isso em si não é o mais interessante... o mais interessante, o que é REALMENTE mais interessante é que a iniciativa de promover o evento partiu dos próprios alunos de graduação, que criaram um grupo chamado "Evolução em Foco". Desejo a eles muito sucesso e uma vida longa ao evento!

Como homenagem a eles - e numa forma desavergonhadamente explícita em manter o blog ativo com textos prontos, hehe - vou reproduzir aqui pelo menos alguns dos textos que os palestrantes do evento enviaram diretamente para o blog do "Evolução em Foco".

Colocarei como "comentário", após os textos algumas considerações minhas, e aí, como sempre, sintam-se à vontade pra pra comentar os textos também, ou, se vocês se animarem mais, em comentar diretamente lá no blog do evolução em foco.

Por enquanto é só o recadinho... já já (amanhã?) o primeiro texto

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A Disseminação da Desordem


Incrível como os bairros de uma cidade grande são heterogêneos em termos de pichação e sujeira, né... Pois é. Peregrinando por BH (mas óbvio que esse contraste não é exclusivo de BH) acabei me lembrando de um artiguinho meio antigo (dezembro de 2008) publicado na Science com o interessante título de “A Disseminação da Desordem”. Nele, um grupo de pesquisadores holandeses tenta testar a “Teoria da Janela Quebrada (TJQ)”.

Talvez vários de vocês já tenham ouvido nessa teoria (Broken Windows Theory, no original), proposta por Wilson e Keling em 1982. A idéia básica é que sinais de “desordem” como janelas quebradas, pichações, e lixo acumulado na rua, acabariam induzindo mais desordem na sociedade através do aumento de comportamentos desordeiros e mesmo de pequenas contravenções. Essa idéia está por trás de todas as políticas públicas tradicionalmente conhecidas como “tolerância zero” implantadas em diversos países, e que têm na Nova York de Rudolph Giugliani talvez seu exemplo mais conhecido. A questão fundamental aqui, portanto, é: “Existe alguma base científica que justifique a teoria da janela quebrada?”

Kees Keizer e seus colaboradores, todos da Universidade de Groningen, argumentam que todos os relatos até agora publicados sobre a validade, ou não, da TJQ vêm de relatos de correlações, e de fato, correlações podem ser espúrias como explicativas de causalidade. Por exemplo, digamos que eu verifique uma correlação entre o número de assassinatos em uma cidade e seu número de escolas. Alguma relação de causalidade aí? Provavelmente não, já que quanto maior uma cidade, maior seu número de escolas e também o número de assassinatos lá ocorridos... Bem, o que Keizer e cols. pretendem é testar pela primeira vez de maneira direta, não-correlacional, a TJQ (uma versão final pode ser baixada aqui - embora sem o formato final da revista).

Resumidamente, eles bolaram seis experimentos e os executaram em Groningen. Em todos eles, os participantes foram cidadãos comuns que não sabiam que estavam sendo observados. Em três dos experimentos, foi avaliado se o fato de atirar ou não lixo no chão estava associado com: a), uma vizinhança (uma mesma rua foi usada) livre ou não de pichação b) um estacionamento de supermercado sem ou com carrinhos de compras espalhados pelo lugar, ou c) um ambiente com ou sem ruídos de fogos de artifício (segundo os autores há uma lei bem conhecida na Holanda que proíbe o uso de fogos de artifício na semana que antecede o ano-novo – o estudo foi feito nessa semana). Em outro cenário, foi avaliado o fato de atalhar ou não por uma passagem proibida estava associado com o modo como bicicletas estavam estacionadas na cerca de proteção (de acordo com uma placa indicando proibições ou em desrespeito à ela); e, finalmente, o último experimento avaliava o ato de furtar ou não um envelope mal-colocado em uma caixa de correios, onde uma nota de 5 euros estava visível em seu interior, quando a caixa de correios estava limpa, pichada ou com lixo espalhado ao seu redor.

Em TODOS os casos, as diferenças entre as situações de ordem e de desordem foram estatisticamente significativas. Nas situações de atirar lixo no chão as diferenças (em percentual, ordem VS. desordem) foram 33% vs. 69%, 30% vs. 58%, e 52% vs. 80% respectivamente. Bastante impressionantes, não? Pra mim é interessante que no último caso o percentual na situação de ordem foi bem mais alto que nos primeiros experimentos... efeito do ambiente anterior de onde os sujeitos vinham (próximo a uma estação de trem)? Nas outras situações ficou assim: o atalho foi usado em 27% vs. 82% das vezes, e o envelope, nas situações de ordem, pichação, ou lixo, foi furtado em 13%, 27% e 25% das vezes, respectivamente. A sugestão dos autores é que quando os sujeitos (e por “os sujeitos” leia-se seres humanos. Ou seja, nós) percebem que uma determinada regra não é seguida isso nos sugere que outras regras não precisam ser seguidas naquele ambiente, em conformidade absoluta com a TJQ!

O que eu acho especialmente legal nesse trabalho é que o desenho experimental me pareceu muito bem feito. Claro, poderíamos sempre nos questionar o quanto os mesmos resultados seriam corroborados por estudos em outras cidades. Como essa não é uma literatura que eu acompanhe, confesso que não sei se isso já foi feito e com que sucesso. De qualquer forma, a mensagem é clara, a política de tolerância zero parece ter base para funcionar.

Tinha um comercial dos pneus Pirelli que dizia que “potência não é nada sem controle”. Pois parece que civilização também não é nada sem controle.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Estatística no Tribunal

Continuando na nossa série forense, li há alguns dias no (excelente) blog de estatística bayesiana do Christian Robert (http://xianblog.wordpress.com/ - às vezes técnico demais, mas pra quem gosta de "aventura" recomendo fortemente, hehe) um post sobre o papel da estatística no julgamento da enfermeira holandesa Lucia de Berk.


O caso, resumidamente, é o seguinte:

Após a morte de um bebê no Hospital da Criança Juliana, em Haia, outras nove mortes ou incidentes graves foram verificados no hospital, que também notou que a enfermeira Lucia estava sempre em seu turno de trabalho quando houve incidentes. Ela foi então considerada suspeita, e o caso teve ampla repercussão e causou enorme comoção no país - lembrem que estamos falando de um hospital infantil.

Em seu primeiro julgamento, em março de 2003, ela foi acusada de quatro homicídios e três tentativas de homicídio, e condenada à prisão perpétua. Lucia sempre negou os crimes. Um dos argumentos mais fortes da acusação consistiu em um modelo estatístico apresentado por um psicólogo forense que considerou que a probabilidade de que uma enfermeira estivesse, ao acaso, envolvida em tantos incidentes seria de apenas 1:342.000.000 (sim, não digitei errado. Um em trezentos e quarenta e dois milhões), que, de fato, é absurdamente pequena. Um analista forense, comentando o caso para a imprensa, afirma que seria impossível condenar a acusada sem a “prova estatística”.

Mas calma aí que fica pior.

Na apelação (Julho, 2004), Lucia foi acusada por novos casos ocorridos nos outros hospitais nos quais trabalhava (sendo dois por envenenamento), e condenada a prisão perpétua com tratamento psicológico forçado (embora os peritos em psicologia não tenham visto nada de anormal nela...), sentença que em março de 2006 foi novamente mudada para prisão perpétua "simples". Devido a problemas com a análise estatística do caso original (relatado acima), apontados por alguns especialistas, o tribunal retira a análise estatística do processo (lembram do nosso analista?). Ainda assim o novo veredito usa termos como “muito improvável”. Claramente, o raciocínio do juiz está baseado em estatística.

Bem, em outubro de 2008 o caso foi reaberto, em parte devido a um abaixo assinado, enviado à suprema corte, que continha a assinatura de vários cientistas. Alguns estatísticos, entre eles Richard Gill, Piet Groneboom, e Peter de Jong, tentam desenvolver um modelo estatístico alternativo, mais realista, para o caso de Lucia. Esse novo modelo, descrito num artigo espantosamente didático e inteligível para não-iniciados como eu, levava em consideração a heterogeneidade de “chances” entre enfermeiras (ou seja, o raciocínio de que há variação individual entre enfermeiras para o "risco" de incidentes graves), e um modelo de Poisson clássico para a probabilidade dos incidentes. Estão sentadinhos? Sério. É bem recomendável.

Lembram, né? 1:342.000.000 foi o cálculo original. Bom, o trabalho dos autores mencionados acima chega a uma chance de 1:7. Cara, 1:7!!!! É só um pouquinho pior do que tirar um "seis" atirando um dado!!! No pior caso para Lucia (dependendo de quais incidentes eram considerados) essa chance cai pra 1:26. Menor que o 1:7, mas cerca de 13 MILHÕES de vezes maior do que aquela probabilidade ridiculamente pequena sugerida no primeiro julgamento.

Vai dizer, chato ser condenado à prisão perpétua por uma chance de cerca de 4%, né? Os autores ainda fazem questão de ressaltar que tudo isso, claro, depende da qualidade dos dados, e isso é um outro ponto crítico. Dependendo de como uma investigação é conduzida, os dados coletados podem sofrer um grande viés de relato. Nesse caso, o impacto do viés de relato pode ser facilmente entendido da seguinte forma; os policiais foram aos hospitais nos quais Lucia trabalhava em busca de outros incidentes durante os turnos de Lucia. O mesmo esforço não foi usado para buscar incidentes nos turnos nos quais Lucia não trabalhava. Naturalmente, a investigação acabará representando em excesso qualquer tipo de evento ocorrido quando Lucia estava no hospital. Esse tipo de viés é muito conhecido também na pesquisa médica, onde eventos positivos tendem a ser reportados (e lembrados) com maior freqüência.

Após a reabertura do caso as acusações foram retiradas, e Lucia foi libertada em Março de 2010. Além da questão estatística, um novo exame químico foi feito que descartava a hipótese de envenenamento naqueles dois casos adicionais citados anteriormente. A questão da estatística aqui é importante porque não há dúvida de que argumentos estatísticos são sim importantes em casos forenses. Afinal, é complicado entender o mundo de uma forma independente de estatística (ou estou exagerando?). Toda a questão de reconhecimento de paternidade (viram o recente veto presidencial à obrigatoriedade de fazer teste de DNA?), por exemplo, se baseia em estatística. Por outro lado, é claro que a argumentação estatística pode estar mal aplicada em um tribunal. Aliás, QUALQUER ciência forense pode, em um determinado caso, representar má ciência.

Se a Ciência não nos dá certezas (por definição), as partes devem se perguntar “há diferentes interpretações para esses fatos?”. Aliás, os juízes devem se perguntar isso, ou ainda mais especificamente, os juízes têm que estar cientes das limitações tanto dos métodos quanto do próprio conhecimento científico. Na ciência publicada, a controvérsia é saudável, rende papers, joga a ciência prá frente. Porém, quando a vida de uma pessoa (do réu) está em jogo, as coisas se tornam mais sérias.

Bom, e aí? Lucia é inocente?

Eu não sei, e na verdade, só ela sabe. E com esse tipo de incerteza também temos que aprender a lidar: a tal Verdade assim com “V” maiúsculo, não pode ser revelada nem pela ciência nem por um tribunal... Justiça com incerteza... Viver com a incerteza... eis a questão.

sábado, 11 de setembro de 2010

De volta (e pra cadeia!)

Bem... Devido a alguma preguiça, a algumas aulas, e a uma virose absolutamente cretina, estamos de volta com o Bio-Blogando, e sim, a idéia é deixar um texto semanal em média por aqui. A ver.


Como uma espécie de exposição pública da minha vergonha pelo período de inatividade, resolvi comentar uma matéria da Science de 16 de Julho (http://www.sciencemag.org/cgi/content/summary/329/5989/262) - meio velhinha pra uma notícia, portanto, mas vamos lá.



O texto trata da captura, no dia 7 de Julho, de um serial killer californiano responsável por pelo menos 10 assassinatos na metade dos anos 80. A história da captura, resumidamente é a seguinte: na Califórnia foi permitido que se criasse, para auxiliar em investigações policiais, um banco de DNA (na verdade um bando com o perfil genético desses indivíduos para marcadores genéticos semelhantes aos usados para paternidade) de indivíduos condenados por qualquer crime. O banco conta atualmente com 1,3 milhão de entradas. O material genético coletado na cena dos crimes na década de 80 foi genotipado e uma busca contra esse banco feita em 2008 retornou vazia. A busca, é importante dizer, é feita de modo a relatar um ranking de suspeitos baseados em similaridade genética, o que significa dizer que o banco não se concentra apenas em matches (identificações) perfeitas, ampliando em princípio o poder do método.

Em 2010, uma nova busca foi realizada, resultando agora em um indivíduo: Christopher Franklin, um jovem negro condenado por porte de arma. Devido ao grau de similaridade entre o perfil genético de Christopher e o do assassino, e também à data dos crimes, as suspeitas da polícia recaíram então sobre o pai de Christopher, Loonie Franklin Jr, agora com 57 anos. Com autorização judicial, a polícia coletou um pedaço de pizza jogado no lixo (parece CSI, né?), extraiu DNA, fez os testes, e BINGO! O perfil genético de Loonie e do assassino eram idênticos, levando rapidamente à prisão de Loonie.

É complicado ler uma história dessas e não ficar orgulhoso do bom uso da ciência e, mais especificamente, da genética, como ferramenta na resolução desse tipo de problema. Ninguém acharia justo que o Sr Loonie permanecesse em liberdade, certo? Pois é, mas segundo algumas pessoas, pode sim haver alguns problemas. Vamos a eles, porque pensar na complexidade do mundo é algo muito divertido.

1. Notem que o software aponta por similaridade e embora os chefes do laboratório afirmem o programa é incapaz de sugerir um suspeito com 25% (equivalente a tio/sobrinho, meios-irmãos, ou avô/neto, por exemplo) ou menos de compartilhamento, é impossível estar 100% seguro que o programa não possa, eventualmente, sugerir um suspeito totalmente não-relacionado com o culpado. Nesse caso, as chances estão contra os negros e latinos, maioria da população carcerária que compôs a amostra.

2. Como conseqüência do nosso 1º ponto, qualquer pessoa pode tornar-se suspeita de ter cometido um crime simplesmente por ter algum parentesco com alguém já condenado por outro crime. Seu tio que você nunca viu foi condenado por algo? Você é um suspeito em potencial para todo e qualquer crime a ser investigado com o método acima.

3. Existe também a questão do direito ao acesso à informação genética individual. Ainda que possamos assumir que no caso dos condenados a justiça entendeu que eles perderam o direito a manterem em privado parte das informações do seu DNA, isso acaba, devido ao parentesco, se estendendo a toda a família do condenado. O recado é que se você tem parentes condenados, você tem menos direito de manter seu DNA em segredo.

Eu vejo ainda possibilidade para uma 4ª questão. Tradicionalmente, nosso sistema de justiça considera que depois de cumprida a pena, quita-se a dívida do sujeito com a sociedade (não estou nem dizendo que concordo, apenas que a lógica é essa). Bom, se as informações do indivíduo não são apagadas do banco de dados após cumprida a pena, é claro que algo não está funcionando nessa lógica...

Por outro lado, o Estado coleta medidas biométricas de todos nós (impressões digitais no mínimo). Ok, essas não são herdáveis, e são únicas mesmo para gêmeos idênticos... Por outro lado, o que vimos acima é essencialmente diferente de uma investigação mais tradicional que também pode chegar aos suspeitos errados pelos mais diferentes motivos? Ou será que só é tecnologicamente diferente? E será que quando é tecnologicamente diferente as pessoas tendem a achar que é mais eficiente? Eu acho tudo isso muito complicado... E vocês?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Genoma: A Nova Bola de Cristal




          A Nature de hoje traz uma reportagem sobre o primeiro ano do geneticista Francis Collins à frente do Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, talvez a agência de fomento à pesquisa mais importante do mundo. Mas cá entre nós, política é um assunto meio pedregoso (embora necessário), e ainda mais tratando-se de política científica americana é melhor esse blog ficar fora da jogada...


          Bom, mas se o primeiro parágrafo é esse... qual é o assunto desse post? Na verdade esse é o primeiro post, de uma possível série, que pretende discutir um pouco as implicações do conhecimento do genoma humano para o entendimento, tratamento e diagnóstico preditivo de doenças comuns. Francis Collins, pra quem não lembra, foi o líder do consórcio público para sequenciamento do Genoma Humano (concorrendo com o consórcio privado de Craig Venter), cujo rascunho inicial foi publicado no início de 2001. Francis Collins, mas não apenas ele, é um dos muitos cientistas que vende ao público a idéia de que uma vez conhecida a sequência de DNA de um indivíduo uma nova era de medicina “personalizada” será possível. Aliás, Craig Venter, o primeiro indivíduo a ter seu genoma sequenciado (em 2007), publicou um artigo de opinião na Nature de 1º de abril (?!) desse ano no qual afirmava , em tradução livre, que “a revolução genômica está apenas começando”. Mas voltemos ao Francis Collins e ao propósito do post.

         Uma informação logo no início da reportagem da Nature nos informa que após pedir para três companhias avaliarem seu genoma para doenças futuras, Collins recebeu três diagnósticos sugerindo que ele poderia desenvolver diabetes do tipo 2 no futuro, e isso o fez mudar alguns hábitos de vida, incluindo exercícios físicos regulares e uma dieta melhor balanceada. Mas peraí... Vocês já estão começando a rir? Já estão chocados? Ainda não? Bom, vamos por partes...

          Em primeiro lugar, é certo que o genoma humano permitiu uma caracterização expressiva da variação genética da nossa espécie, mas ainda é pífio o conhecimento sobre os fatores genéticos que influenciariam o surgimento de doenças complexas. Diabetes tipo 2 é uma doença especialmente infernal no sentido de ser amplamente estudada e com pouquíssimo consenso sobre quais fatores realmente são importantes em diferentes contextos genéticos e ambientais. Mas tudo bem, vamos supor que tudo isso fosse conhecido. Segundo ponto: qual a probabilidade de que ele fosse desenvolver a doença? Porque, putz né, não estamos pensando aqui que as suas variantes fossem DETERMINAR que ele desenvolvesse diabetes, mas apenas que conferissem a ele chance maior de doença. Então tá, ok. Quanto mais? 10% mais do que a média? 40%? 50, 70, 90%?? E qual a chance de que novos hábitos de vida reduzissem essa chance? Para quanto? O que fazer com esses números (já perguntou Humberto Gessinger)?? Ele precisava fazer três varreduras genômicas pra começar a comer iogurte e granola??

          Outro caso muito interessante pra pensarmos nessas questões de chance e genoma é o do caso do jogador de futebol francês (de origem africana) Diarra (que fiquei sabendo no blog da Karla. A reportagem do Correio Brasiliense está aqui), que, diagnosticado com anemia falciforme, não pôde ir à Copa da África. Vamos lembrar, trata-se de um atleta de altíssimo nível. E aí? Cuidado responsável com a sua saúde ou discriminação genética? Complicado, né?

          Pode ser pessimismo meu, mas como uma das poucas verdades absolutas nas quais acredito é que “as coisas são complexas” (junto com “sempre pode piorar”), não consigo me juntar àqueles que têm tanto entusiasmo pelos aspectos preditivos do estudo do genoma humano. Tantas variáveis, tantas interações entre genes e ambiente, tanto acaso nas próprias histórias de vida, pra no fim a gente chegar a um número que vai refletir uma probabilidade com a qual ninguém vai saber exatamente o que fazer?? Óbvio que é super importante conhecermos os fatores genéticos que influenciam características patológicas (e normais), mas realmente chegaremos a qualquer nível razoável dessa tal de medicina personalizada que estão prometendo há mais do que uma década?? E queremos isso??

           Será a “nova era” da medicina genômica personalizada a materialização dos nossos piores pesadelos deterministas?

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dez anos de Genoma no Brasil



Há pouco mais de dez anos, em 13 de Julho de 2000, um consórcio de laboratórios paulistas publicou na revista Nature, com financiamento da FAPESP, o genoma completo da bactéria Xylella fastidiosa, que afeta o sistema vascular de diversas espécies de plantas (no caso, o isolado estudado infectava laranjeiras). Foi o primeiro genoma sequenciado e montado no país.

O aniversário de dez anos dessa publicação foi lembrado pela própria Nature (http://www.nature.com/nature/journal/v466/n7304/pdf/466295a.pdf). A principal conclusão da revista é que a história de sucesso do genoma da Xylella (publicação na Nature, criação de companhias de biotecnologia - posteriormente compradas pela Monsanto, desenvolvimento de patentes) não gerou muitas histórias semelhantes na década que se seguiu. Parece faltar, na visão da revista, coragem suficiente na ciência brasileira para que se investa em idéias arrojadas e, principalmente, em esforços maiores que liguem a ciência básica à ciência aplicada, ao menos se tratando de biotecnologia.

Numa época em que o sequenciamento de um genoma bacteriano era um esforço técnico considerável para garantir uma publicação (de capa) na Nature, o projeto Xylella foi também uma mostra do poder econômico (e político) da FAPESP. De fato, uma iniciativa semelhante comandada pelo CNPq (Projeto Genoma Nacional) em nível nacional é bem posterior ao projeto Xylella - os primeiros sequenciamentos do projeto do CNPq começaram a ser feitos apenas em 2001.

Mas o sucesso dos projetos Genoma feitos no Brasil vão além da questão da publicação e, mesmo, do desenvolvimento de patentes, embora essas sejam medidas inegavelmente importantes. Nesse tipo de projeto, ainda mais quando feito em consórcios de laboratórios, são também objetivos primários prover os laboratórios com equipamentos modernos e treinar os pesquisadores para lidar com esse tipo de dado. Para que ambos sejam usados em projetos subsequentes. Nesse sentido, acho que todos os projetos Genoma foram extremamente bem sucedidos no país.

E aqui tem algo importante; isso de “medir” sucesso. Quando essa medida vira um “número”, seja o número de publicações derivadas do projeto, o fator de impacto da revista, ou uma conta complicada do custo médio de cada publicação, toda a parte de formação de recursos humanos se perde, e seria um crime engessar a política científica com f´rmulas simplistas.

Tá, mas e o futuro? As técnicas usadas em genômica atualmente são muito diferentes do que aquelas de dez anos atrás (e geram um volume de dados absurdamente maior). Embora a Nature jogue a responsabilidade da inovação sobre os pesquisadores individuais (talvez com um pouco de razão), quem conseguiria aprovar um projeto individual ambicioso? Pouquíssimos pesquisadores! Já existem no país alguns grupos capazes de gerar e lidar com esses dados, mas são poucos. Talvez fosse interessante pensar se seria estrategicamente importante para a Biologia Molecular brasileira a criação (mas sim, alguém tem que propor...) de algum novo projeto nacional para equipar alguns laboratórios e, principalmente, formar gente capaz de fuçar nos dados disponíveis atualmente.

O Brasil fez um avanço tremendo há dez anos, mas as técnicas científicas mudam rapidamente. Não podemos nos arriscar a ficar para trás agora.

PS: Outra discussão pode ser: Num país de recursos financeiros limitados, é justo gastar uma pequena fortuna em um projetão de genética e biologia molecular, que de certa forma, já são as “primas ricas” nas ciências biológicas no país? Embora essa seja uma questão complicada (e eu tenha um viés óbvio por ser geneticista), acho que sim. Além de ser uma iniciativa que ajudaria a ligação da ciência básica com algo mais aplicado (que de fato, não é o forte por aqui), a formação de recursos humanos capazes de lidar com essas informações certamente contribuirá também na interação dessas novas técnicas com áreas menos aplicadas como a genética evolutiva e a genética da conservação.

sábado, 31 de julho de 2010

O presidente e a perereca



Nessa última quinta-feira, em Porto Alegre, o presidente Lula voltou a comentar sobre os atrasos no cronograma de obras do PAC. O que nos interessa em nosso blog é que, ao comentar sobre um episódio, durante a duplicação da BR-101 no RS, no qual a construção de um túnel foi interrompida pela descoberta de uma espécie de perereca (na verdade um sapo) considerada “criticamente ameaçada” de extinção. Os comentários, mui edificantes referentes à conservação da biodiversidade no nosso país. Vejam só:

“Coloca-se o Brasil todo a serviço das pererecas. ... Nós sabemos da importância das pererecas, mas não pode parar o Brasil. ... Eu vou passar embaixo daquele túnel nem que eu tiver que me 'atarracar' com aquela perereca lá. Peça para a perereca sair de perto, porque eu vou vir meio nervoso".

Nunca antes na história desse país um governante atacou tão explícita, verborrágica, e, enfim, despudoradamente uma área da ciência como nosso presidente fez com a Biologia da Conservação.

E bom né, se o presidente do país me diz um troço desses, o que esperar da política de obras do governo? O pior é que pra entender a importância da conservação, não é necessário nem se ater aos aspectos não-utilitários da conservação. Já tá mais do que demonstrado que conservar a biodiversidade é economicamente estratégico para um país. Bem resumidamente, quanto mais degradação, mais alteração das condições de subsistência das comunidades que vivem na área, e mais dinheiro tem que ser destinado a essas comunidades e à recuperação das áreas.

Duro vai ser acompanhar no noticiário algum futuro discurso presidencial no exterior louvando a rica biodiversidade brasileira, blá, blá, blá. Ele só terá que explicar que a essa biodiversidade só é legal quando não atrapalha o PAC...
Na foto, o simpático Melanophyniscus macrogranulosus em vista dorsal (à direita), e ventral (à esquerda), onde se entende pelo menos parte de seu nome popular: “sapo narigudo de barriga vermelha, junto com seu mui amigo famoso.
PS: Fora que tanto descaso com o anuro é no mínimo uma falta de sensibilidade pra quem já foi chamado de sapo barbudo, vocês não acham?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

O cão que tomou Prozac – e outras histórias

Texto referente a um artigo que saiu na seção “News” da Revista Science de 23 de Julho (Science 329: 386-7, http://www.sciencemag.org/cgi/content/short/329/5990/386 p/ assinantes).




Bem, Galileu nos ensinou, para estupefação geral, que não somos o centro do universo... Duro, né? Bom, podia ser pior... Veio o Darwin, e aí vocês sabem... nossa espécie está aparentada, em maior ou menor grau, com todas as outras espécies viventes no planeta. Não fomos criados especialmente nem temos uma história especial (ou ao menos, não mais especial do que àquela de todos os primos).

O que é interessante nessa coisa toda, é que embora a idéia darwiniana de ancestralidade com modificação tem mais de 150 anos, e mesmo assim o pessoal se surpreende. Um veterinário americano, Nicholas Dodman, da Clínica de Comportamento Animal da Universidade Tufts, conseguiu tratar Dobermanns com comportamento obsessivo (tipo o nosso velho Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC) e ele pode ter descoberto uma nova droga para tratamento de pessoas com TOC. A primeira nova droga em décadas! A droga em questão é a Memantina, atualmente aprovada para uso na doença de Alzheimer, e usada junto com Prozac nos cães (só o Prozac está no título porque ninguém saberia o que é a Memantina, certo? Um pouco de “licença poética”, por favor). A combinação também foi testada com sucesso em pessoas com TOC em um estudo clínico pequeno, em estudo chefiado pelo psiquiatra Michael Jenike, do Hospital McLean, em Belmond, nos EUA .

Em termos bioquímicos, a nova droga é interessante por sugerir que o tratamento do TOC será mais eficiente se não tiver como alvo apenas o neurotransmissor Serotonina (o Prozac atua nessa rota), mas também o glutamato, alvo da Memantina.

Em termos conceituais, o fascinante dessa história é o comentário de Dodman, sobre as enormes dificuldades em fazer com que outros cientistas aceitem que animais com desvios de comportamento podem ser úteis em nos ensinar a base biológica desses transtornos em humanos (ok, pelo menos parte dela). Lembrando, mais de 150 anos depois de Darwin... Vejam por exemplo o que o próprio Jenike disse (em tradução livre): “Para mim é difícil ver um cão mordendo a própria pata e chamar isso de TOC. No TOC você precisa saber o que há dentro da cabeça.”

Mas peraí, deveria ser tão surpreendente mesmo? Não compartilhamos uma base biológica imensa com nossos animais de estimação (para os gateiros, como eu, o artigo também comenta o caso de gatos que começam a limpar as patas compulsivamente)? Se algo químico não vai bem no cérebro do bicho (ou do nosso), não é totalmente plausível que comportamentos anormais semelhantes surjam? Segundo Dodman, talvez a única doença psiquiátrica sem paralelo no mundo animal seja a esquizofrenia.

Pros geneticistas, algo bem bacana também. Estudando um grupo de Pinschers com “TOC”, ele encontrou que o gene da caderina-2, uma proteína envolvida no desenvolvimento do cérebro e potencialmente relacionada com os receptores de glutamato, estava super-representada em cães com o transtorno. Um estudo está sendo feito em humanos com TOC focando nas caderinas, sob responsabilidade de Dennis Murphy, do instituto Nacional de Saúde Mental em Maryland, nos EUA.

Pra humanidade a coisa tá feia. Nem as “nossas” doenças a gente pode ter em paz...