terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A Bactéria da Nasa: algumas reflexões sobre divulgação científica



Em termos técnicos, ela atende pelo nome de GFAJ-1 e pertence à família bacteriana das Halomonadáceas, mas provavelmente você ouviu falar dela como a “bactéria-ET”, ou a “bactéria da NASA”.

Na semana passada, a NASA, numa tentativa (bem-sucedida, aliás) de chamar o máximo de atenção do público, convocou uma entrevista coletiva para anunciar uma nova descoberta que revolucionaria nossa forma de pensar a vida, com implicações importantes para o entendimento das possibilidades de vida fora do planeta Terra, e que seria publicado em um artigo científico na revista Science.

Bem, com uma chamada dessas, até dá pra entender o desânimo de várias pessoas quando a NASA finalmente anunciou que a nova descoberta era “apenas” uma bactéria terráquea. Mas peraí né. Afinal de contas, era uma terráquea com uma capacidade muitíssimo peculiar: substituir o fósforo (normalmente capturado bioquimicamente na forma de fosfato) por arsênio (arseniato, no caso). E o mais chocante de tudo, essa bactéria conseguiria crescer na ausência de fosfato utilizando arseniato para compor suas macromoléculas: DNA/RNA, proteínas e lipídios. Um DNA sem fosfato de fato é uma bela novidade!

Como a bactéria foi isolada a partir de sedimentos do Lago Mona, na Califórnia, que é um lugar onde a concentração de sais (incluindo o usualmente tóxico arseniato) é violentamente alta, até faz algum sentido evolutivo, em primeiro lugar, que essa bactéria deva ter meios (adaptações) de lidar com esse monte de arseniato que existe no ambiente e, em segundo lugar, que (esse passo agora é meio grande...) essas adaptações poderiam incluir uma flexibilização nas rotas de síntese de macromoléculas para usar o arsênio como substituto do fósforo...

Mas bem, o ponto principal desse post é pensar como as pessoas reagiram ao artigo. De uma forma geral, eu diria que como regra, especialmente nos comentaristas procurados pela mídia nacional, não se questionou em nenhum momento a acurácia dos testes e da interpretação dos resultados do grupo da NASA. O que me parece especialmente estranho é que essa "aprovação" às conclusões dos autores foi emitida mesmo ANTES do artigo estar disponível. Por que essa fé? Grife NASA ou grife Science?

Talvez ainda tomados da necessidade de sobrevalorizar a descoberta, numa linha meio “gente, não é um ET, mas é muito legal”, alguns especialistas também escorregaram em “sobreinterpretações”. Teve gente (da área) que falou que essa descoberta “derrubava a noção de ancestralidade comum entre os seres vivos”. HEIN?? Será que não é claro que o uso de arseniato no metabolismo, se confirmado, representa uma nova adaptação que surgiu em uma linhagem específica que está perfeitamente conectada às outras através de relações de ancestralidade??? Pior, no artigo original existe até uma filogenia da GFAJ-1. Ora, se uma filogenia é uma representação de ancestralidade, como que essa bactéria foge ao padrão de ancestralidade comum? Uma outra comentarista ouvida pela imprensa nacional também parece não ter lido o artigo original, já que ao comentar a descoberta (no dia seguinte à sua publicação) disse que“seria ótimo fazer uma filogenia dessa bactéria usando o gene 16S” (Aqui uma nota: esse é o gene típico pra caracterizar a ancestralidade de uma bactéria, e foi EXATAMENTE isso que foi feito no artigo original).

E outra coisa importante, por que os veículos de divulgação não discutem a incerteza que pode existir sobre os resultados e suas conclusões (discussão essa que parece essencialmente limitada a blogs sobre ciência). O máximo que eu vi na imprensa brasileira foi uma matéria no iG sobre o ceticismo de um prêmio Nobel (olha a grife aí gente) sobre o assunto. Porque assim né (só eu acho isso?), é impossível tentar “alfabetizar” cientificamente uma sociedade sem deixar claras as limitações da própria ciência. Considerar que cada nova descoberta está “escrita em pedra” ignora um dos principais aspectos do fazer científico, que é seu eterno ceticismo, sua eterna ânsia em refutar coisas. Quem quiser ler uma longa argumentação de motivos pelos quais os dados apresentados no artigo podem não ser tão robustos assim tem nesse post (em inglês e bem técnico) uma ótima leitura.

Aliás, pra quem gosta também de pensar em como a luta por recursos pode apressar (pra dizer o mínimo) a publicação de resultados ainda não totalmente convincentes tem na historinha da GFAJ-1 um caso interessante. Algumas pessoas acham que todo o aparato midiático foi usado pela NASA, pelo menos em parte, para justificar a continuidade de seu (caro) programa de pesquisa em exobiologia. Mais. Paul Davies, co-autor do artigo disse que o nome da bactéria significa “Give Felisa a Job”, ou “Dê um emprego à Felisa”, já que a Felisa Wolfe-Simon, primeira autora do artigo, ainda não tem uma posição permanente na equipe de pesquisadores da NASA...

E eu, estou dizendo que tudo não passa de uma conspiração? Não. Só estou dizendo que a história da bactéria que come arsênio ainda está muito longe de ser esclarecida, e alguns aspectos “além da ciência” não ajudam. Mas também, o artigo pode ser um marco. SE confirmada, a GFAJ-1 realmente nos ensinará que a vida é muito mais flexível do que imaginávamos e, sim, aumenta o espectro de situações possíveis onde podemos buscar “vidas” em outros lugares da galáxia, mas a gente não pode, ao fazer divulgação científica, ignorar esse “SE”. Esse “SE” é absolutamente fundamental. Esse “SE” é ciência!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Contradição em Termos - por Reinaldo Lopes

O texto abaixo é o primeiro "copiado" do site do Evolução em Foco. Foi escrito pelo jornalista Reinaldo Lopes, na Folha, especialziado em divulgação científica e que mantém o blog Laboratório. Mostra de uma forma bem interessante e pouco explorada como o próprio relato bíblico torna impossível um "criacionismo literal".


Contradição em Termos

Por Reinaldo Lopes

Permita-me fazer uma proposta modesta, gentil leitor. Toda vez que alguém se disser contra a teoria da evolução porque é criacionista e, portanto, “acredita na criação descrita na Bíblia”, pergunte educadamente ao seu interlocutor: qual criação? Nosso criacionista hipotético pode nem ter reparado, mas há DUAS criações diferentes da Terra e dos seres humanos, uma depois da outra, no livro do Gênesis. Aliás, elas se contradizem.

Ok, talvez a minha proposta modesta não seja tão modesta assim. Indo mais adiante com ela, arrisco-me a dizer, com base no dado acima, que o criacionismo literalista, aquele que supostamente segue “ao pé da letra” o texto bíblico, não só é inviável do ponto de vista lógico como talvez vá diretamente CONTRA as intenções dos gênios israelitas anônimos que escreveram e compilaram os primeiros capítulos do Gênesis. O alto grau de simbolismo e esquematização adotado por esses autores deixa mais ou menos claro que eles não teriam problema nenhum com uma leitura não-literalista de seus textos cosmogônicos – e possivelmente até tivessem essa intenção desde o início. É o que pretendo demonstrar nos parágrafos a seguir.

Nomes divinos
Qualquer pessoa que tenha em mãos uma boa tradução da Bíblia e esteja um pouquinho atenta vai perceber que, durante as narrativas da Criação, parece haver uma mudança de pronome de tratamento. Do começo do Gênesis até o versículo 4 do capítulo 2 (a primeira narrativa), Deus é simplesmente “Deus”; daí em diante, até o começo do capítulo 3 (fim da segunda narrativa), ele se torna o “Senhor Deus”. Essa mudança não tem nada de casual: representa, em hebraico, a transição do termo Elohim (literalmente “deuses”, mas na verdade uma espécie de plural majestático que designa o Deus único) para o termo Yahweh Elohim (ou “Javé Deus”, como vemos em algumas traduções atuais). Yahweh, ou Javé, parece ter sido o “nome próprio” (por falta de palavra melhor) da divindade de Israel antes que os judeus, por respeito, deixassem de pronunciar a palavra.

O mero fato de as duas designações serem usadas de maneira consistentemente separada nos capítulos que abrem a Bíblia é sugestivo, mas não prova muita coisa. Bem mais reveladora é a estrutura dos relatos. Os defensores do literalismo bíblico às vezes argumentam que o segundo relato é apenas a explicação e a ampliação do primeiro, partindo do geral para o particular. Boa tentativa, mas a leitura do texto sem preconceitos pega essa interpretação de calças curtas.

A primeira narrativa, por exemplo, diz que Deus criou as plantas no terceiro dia de seu trabalho, as aves no quinto dia e os animais terrestres no sexto dia, pouco antes dos humanos. (Aliás, a divisão do trabalho divino em dias só aparece no primeiro relato.) Já o Senhor Deus (lembre-se, são nomes divinos diferentes), de acordo com o texto, criou o homem “quando ainda não havia nenhum arbusto do campo sobre a terra e ainda não tinha brotado a vegetação, porque o Senhor Deus ainda não tinha enviado chuva sobre a terra, e não havia ninguém para cultivar o solo”. O Senhor Deus primeiro forma o homem com o barro da terra e só então planta um jardim no Éden, onde coloca o humano primordial. Mas as plantas não surgiram antes das pessoas? Não de acordo com a segunda versão da Criação.

A narrativa número 2 prossegue: “Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens”. Novamente, não há como harmonizar as duas histórias, já que os animais existiam antes dos seres humanos, segundo o que diz o relato número 1.

O caráter independente das duas narrativas da Criação fica ainda mais claro no clímax de ambas as histórias, a criação do homem e da mulher. Você obviamente se lembra do uso da costela do primeiro membro do sexo masculino como matéria-prima para a produção do primeiro membro do sexo feminino. (Não estou usando “Adão” e “Eva” porque, nesses relatos primevos, eles não têm nome próprio.) Pois a narrativa número 1 da Criação aparentemente nunca ouviu falar em costela. Deus usa apenas a palavra (com verbos, aliás, na segunda pessoa do plural; ele parece estar deliberando com seus conselheiros angélicos) como matéria-prima: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (o humano de barro da outra versão aparentemente não é a imagem e semelhança de Deus…). E o texto continua: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou”. Sim, ambos os sexos surgem simultaneamente nessa versão.

Sacerdotal
Após ler sobre essa fieira de incongruências, talvez você esteja achando que eu compartilho do escárnio e da pena que tanta gente gosta de destilar sobre as narrativas da Criação. Pois não o faço. Ambas as histórias estão cheias de poesia e beleza, representando insights importantes sobre a relação do homem com a natureza e com Deus. Mas essas lições poderosas só ficam realmente claras quando deixamos de lado a mania de ler tais textos como manuais de ciência planetária, biologia e história e nos damos conta de que eles são formas narrativas de expressar uma visão de mundo.

Para ficar restrito apenas à história número 1 (minha favorita, devo confessar), não é por acaso que a maioria dos estudiosos do texto bíblico a atribui a um membro da casta sacerdotal israelita. A estrutura altamente ritmada e simétrica do texto faz do Cosmos inteiro um gigantesco templo e retrata Deus como o sacerdote.

Como os celebrantes no Templo de Salomão, Deus abençoa a Criação e consagra o sétimo dia, o sábado, como o dia santo para celebrar a conclusão de sua obra. (Curiosamente, o mandamento de guardar o sábado, na maioria dos textos bíblicos, como em Deuteronômio 5, 12-15, não usa a Criação como justificativa, o que parece indicar que a ideia foi introduzida de forma tardia na cultura israelita.)

O número sete, símbolo da completude no antigo Oriente Próximo, não aparece só quando falamos do número de dias da Criação. A frase “e Deus viu que era bom” (referindo-se a algum elemento criado) surge sete vezes no texto; a palavra “Deus” aparece exatas 35 vezes (pois é, sete vezes cinco); e a descrição do sétimo dia tem, em hebraico, exatas 35 palavras. E os três pares de dias em que Deus trabalha ativamente são unidos por simetrias que vão do geral para o particular, em geral com três dias de separação entre si. A luz, por exemplo, é criada no primeiro dia; já o Sol e a Lua surgem no quarto dia. O céu é criado no segundo dia, enquanto as aves surgem no quinto dia, e assim por diante.

Deixe-me frisar novamente: isso não é história, é poesia, e o autor bíblico sabia que era poesia. É uma forma de expressar a crença de que o desejo de Deus para a humanidade e para toda a natureza é um mundo harmônico – tanto que humanos e animais são imaginados como vegetarianos, para desespero dos que gostam de atribuir os atuais desastres ambientais à influência ideológica do Gênesis.

Chegamos a um caso curioso de “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não é possível honrar a complexidade – e a letra – do texto bíblico sem reconhecer seu caráter polifônico e simbólico. Paradoxalmente, quem se diz criacionista se recusa a fazer isso. Além de se recusar a apreciar o quadro em expansão que a ciência está pintando sobre as origens da vida e do Universo, pode muito bem ser que os criacionistas estejam negligenciando o melhor do seu próprio texto sagrado.